O terceiro encontro da nossa oficina-experimento aconteceu na última quinta, 17 de setembro. Abrimos os trabalhos compartilhando os textos nascidos a partir do enunciado UM DIÁLOGO ENTRE DUAS PARTES DO SEU CORPO. Após cada leitura, numa espécie de roda de conversa, _s ouvintes são convidados a dividir com o grupo suas impressões a respeito do texto apresentado: "quais aspectos da dramaturgia criada pel_ colega chamou mais sua atenção? Quais conexões/associações são possíveis de ser feitas por meio dessa pequena-obra? Quais questões apresentada pelo texto você destacaria?" - são essas algumas perguntas que guiam nossas trocas. Podemos também recorrer ao uso do "e se" para sugerir alguma mudança no texto apreciado¹.
Como condutor, noto que _s participantes têm amadurecido a cada encontro. A escrita do coletivo já revela diferentes texturas, possibilidades de entendimento e familiaridade com alguns elementos básicos do texto dramático. Não que esse seja nosso foco - a escrita dramática. Mas optei por ter o texto dramático como ponto de partida. Por tanto, tenho proposto exercícios de escrita afinados com os elementos do drama (diálogos, personagens, enredo) para, na sequência, experimentarmos outras estratégias de escrita, desvios e desconstruções.
Ao longo das trocas, usou-se muito a expressão "esse é um texto fácil, leve..." (de ler, de entender, de ouvir...) A uma certa altura propus que encontrássemos outra forma de adjetivar os textos. "Fácil" estava começando a soar como "legal". Perguntei: "quando vocês dizem "fácil" vocês querem dizer..."
O Veec,então, sugeriu:
"Tem um fluxo fluído..."
E o coletivo compactuou com essa definição.
A seguir, alguns textos escritos e compartilhados na última quinta:
(A Laura observa a
paisagem enquanto o sol se põe. O coração, animado e rapidamente, diz
aos olhos.)
Coração: Olha, olha! Veja que liiindo! É tão bom! É tão bom viver! Veja lá!
Veja cá! Taantaa
coisa!
Olhos: Calma! Não consigo ver o mundo inteiro de uma vez só, cê sabe né?
Coração: Olha, saber eu sei... Mas quem disse que eu aceito haha.
Olhos: Pois devia. Eu não vou conseguir ver tudo antes de ver a morte chegar, é
fato.
(Coração diz primeiramente com o tom decepcionado e depois esperançoso)
Coração: Ah, mas... e se você correr??
Olhos: Não adianta, não sou Perna nem Pé. Sou devagar quase parando. E a gente
já tentou,
não se lembra?
Coração: Isso de lembrar é trabalho do Cérebro, não meu.
Olhos: Ora, mas então você não se lembra de nada?
Coração: Me lembro sim! É claro.
Olhos: Do que?
(coração suspira)
Coração: De que amar é bom e a vida é linda...
(olhos reviram)
(Alguém chega perto da Laura. Olhos sussurra)
Olhos: Você está vendo isso?
Coração: Ai papai, apaixonei...
Olhos: Mas que lindo par de olhos. (Olhos se dirige ao par de olhos da outra
pessoa) Oi chuchu,
vem sempre aqui?
(Extensos instantes)
Coração: Olhos, ei! Olhos!
(Olhos sai do transe)
Olhos: Oi! Oi! Que foi?
Coração: Sabe aquele papo de se apressar?...
Olhos: O que tem?
Coração: Esquece, tá? Vai devagarinho mesmo, quaaase parando... Nem precisa ver
o mundo
inteiro mais não... Mas foca BEM nesses olhos castanhos aí, fechou?
Texto escrito pela Laura.
CÉREBRO
e ÚTERO
ÚTERO:
Hum. Hum.
CÉREBRO:
Que?
ÚTERO:
Hum?
CÉREBRO:
É o que?
ÚTERO:
Hum hum?
CÉREBRO:
Não entendo você. Na verdade, nunca entendi.
ÚTERO:
Hum. Hum.
CÉREBRO:
Na verdade, você não deve me entender também. Mas ao contrário de você eu
consigo notar esse desencontro. Por exemplo, não sei se os animais percebem que
não os entendemos.
ÚTERO:
Hum hum hum.
CÉREBRO:
Você poderia estar dizendo milhões de coisas pra mim. Mas o que eu entendo?
Nada.
ÚTERO:
Hum?
CÉREBRO:
Nada.
ÚTERO:
Hum. Hum.
CÉREBRO:
Além disso você é muito pouco comunicativo. Só escuto você quando está se
comprimindo.
ÚTERO:
Hum hum? Hum hum hum hum.
CÉREBRO:
Você sabe que hora... Eu não preciso falar... Você entende melhor que eu.
ÚTERO:
Hum hum?
CÉREBRO:
Sim, sim. Estou admitindo. Nem sempre cumpro minha função. Você não sabe o quão
difícil é entender tudo. Às vezes não entendo nada.
ÚTERO:
Hum.
CÉREBRO:
Nada.
Texto escrito pela Sofia Rosi.
Vesícula e fígado
Vesícula: (cabisbaixa) Tenho uma má
notícia para te dar.
Fígado: Má? (em tom irrelutante) Não, não
quero.
Vesícula: Não?
Fígado: Não gosto de más notícias.
Silêncio.
Fígado: (irritado) Ora, vamos! Fale!
Vesícula: (confusa) Você tinha dito que
não queria!
Fígado: Você sabe que não me aguento de
curiosidade.
Vesícula: Bem... Vou embora.
Fígado: Embora? Que bobagem, embora pra
onde?
Vesícula: Vão me remover. Eu adoeci.
Silêncio por um longo momento. Então,
Fígado explode em risadas.
Fígado: Como você é boba!
Vesícula: Estou falando a verdade.
Fígado: (hesitante) Adoeceu?
Vesícula: Sim. A má alimentação me deixou
dessa forma.
Fígado: (incrédulo e revoltado) A má
alimentação não é culpa sua, e você será removida? Como isso é justo?
Silêncio enquanto a Vesícula reflete.
Vesícula: Bem, justo talvez não seja. É
realmente triste que a ação do outro tenha efeitos negativos em alguém
inocente, mas somos um todo. É assim que as coisas são.
Fígado: E o que acontece se você ficar?
Vesícula: Ora, meu amigo. Estamos juntos
há tantos anos, praticamente colados, vivendo e trabalhando juntos. O que você
acha que aconteceria?
Fígado: Bem, eu não sei.
Vesícula: Eu adoeceria você.
Silêncio longo, pesaroso, saudoso.
Fígado: Isso não é justo. Ficarei
sozinho.
Vesícula: (otimista) Mas saudável.
Fígado: Saudável, mas não feliz. Qual é o
ponto?
Texto escrito pela Amanda Costa
(pensei ao ler/ouvir os exercícios: propor enunciados que demandem mais descrição da "ideia teatral" vislumbrada pel_s jovens. por ora, por ora, demandar uma escrita com com mais riqueza de detalhes da cena imaginada. )
Por fim, iniciamos um novo exercício de escrita. Conto o enunciado dele e apresento as dramaturgias geradas a partir da proposta no post a seguir.
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¹ estratégia cunhada pelo dramaturgo-pedagogo Jean Pierre Sarrazac. SARRAZAC, Jean Pierre. A oficina de escrita dramática. Trad. de C. dos S. Rocha.
Educação e realidade. Rio Grande do Sul, v. 30, n. 2, p. 203-215, jul-dez 2005.